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A Propósito do PERDÃO ou, o Propósito de PERDOAR

Atualizado: 19 de ago. de 2019




“Saber perdoar” é normalmente considerado como sendo uma virtude. Mas sê-lo-á? E de que falamos nós quando falamos de perdoar?




Outras questões pertinentes que também se poderão colocar são:

-Perdoar, relaciona-se, apenas, com quem se sente ofendido/traído/abusado/agredido/violentado, ou, relaciona-se, também, com quem ofendeu/traiu/abusou/agrediu/violentou?

- Quando eu perdoo tenho em conta apenas o meu sentir, ou é um requisito perceber se o outro agiu conscientemente, propositadamente, e sendo assim se tal facto gerou ou não remorso e arrependimento?

- Posso eu perdoar actos praticados contra terceiros ou contra a humanidade?

Estas questões estão longe de ser consensuais, quer sejam abordadas pela religião, pela filosofia ou pela psicologia.


No que respeita à religião, na maior parte dos casos, perdoar não é considerado uma virtude, embora, no cristianismo, o perdão esteja associado ao amor e às virtudes da caridade e da paciência.

Há teólogos que consideram, por um lado, o perdão humano, que cada um de nós concede (ou não) ao outro, no âmbito das ofensas interpessoais, e, por outro lado, o perdão divino, concedido por Deus ao homem, (através do seu amor incondicional), absolvendo-o dos seus pecados, mas mediante arrependimento (perdão condicional).

O perdão divino visa reconciliar o homem com Deus. Já o perdão humano, pode ser visto num contínuo que pode ir desde abrir o coração ao outro num amor e perdão incondicional, que não necessita do outro nem do seu arrependimento- é um acto subjectivo de quem o pratica- até um perdão que implica acções que poderão (ou não) vir a resultar em reconciliação, sendo que para tal será necessário que ambas as partes deem passos nesse sentido.


No campo da Filosofia vale a pena revisitar a postura de Aristóteles, uma vez que a sua obra, nomeadamente a Ethica, ainda hoje é motivo de reflexão. Howard Curzer, no seu livro “Aristóteles e as virtudes” e Gregory Sadler no seu artigo “Perdão, zanga e virtude numa perspetiva aristotélica” abordam alguns aspectos do pensamento deste filósofo grego a propósito do perdão.


Para Aristóteles o perdão não é uma virtude, embora esteja associado à virtude da temperança, sendo uma possível resposta virtuosa, quando concedido com conta, peso e medida. Ao contrário de outros filósofos, que consideram uma virtude num polo e o vício no polo oposto, Aristóteles olha para o perdão, como fazendo parte da virtude da temperança e como tendo dois vícios em cada polo: o défice, e o excesso. Assim, o perdão incondicional é visto como um mito ou um vício.

Aristóteles, defensor da moderação ou da justa medida, considera a zanga e a retaliação como válidas em determinadas alturas, face a algumas situações ou pessoas, se tiverem uma duração apropriada e uma intensidade correcta. Na sua perspectiva, a zanga pode ser boa ou má, podendo ser necessária e motivadora e não apenas algo para ser controlado.


Quanto ao perdão, Aristóteles considera que há actos que não devem ser perdoados, pois foram conscientes e deliberados, sendo eticamente reprovável fazê-lo. Quem o faz, tem um défice de zanga, isto é, não se zanga quando deve ou com o que deve, ou com quem deve, sendo que, esta incapacidade pode ser prejudicial para o próprio, para os outros, e para a comunidade. De acordo com Aristóteles, para se aspirar ao perdão é necessário arrependimento e responsabilização que implica justiça e tentativa de reparação.


Chegamos agora a uma perspetiva psicológica e às implicações do perdão no bem-estar psicológico.

Alguns estudos mostram que as ofensas mais difíceis de perdoar são as que envolvem intencionalidade e em que não há pedido de desculpa, expressão de remorso ou arrependimento. Estes factores levam a que o ofendido considere, tal como Aristóteles, que nestes casos o agressor não deve ser perdoado. É isto prejudicial ao bem-estar psicológico? Não.


O perdão envolve sentimentos, pensamentos e tendências comportamentais (ou mesmo comportamentos efectivos) e surge-nos como tendo duas dimensões: uma intrapsíquica, isto é, ocorrendo na mente de quem perdoa, e a outra, interpessoal, ou seja, ocorrendo em função do outro. Ambas as dimensões comportam factores que se centram no próprio e que se centram no outro.


É possível confirmar através da prática clínica que, em muitos casos, a tendência para perdoar está relacionada com alguns factores tais como: dificuldades na auto-focagem, medo do confronto com uma realidade difícil, receio de perder uma relação significativa. Isto pode ser reforçado por um ambiente externo, quer seja social, cultural ou religioso, que pressione no sentido do perdão. A título de exemplo, poderemos referir os casos de violência no seio do casal, em que a vontade de perdoar está mais associada ao facto de se querer manter a relação do que ao perdão propriamente dito.

Algumas vezes a urgência de perdoar, mais não é do que uma tentativa de não entrar em contacto com emoções de zanga vistas pelo próprio como negativas e não possibilitando poder ver-se como uma “boa pessoa”. Esta fuga de si próprio e do conflito interno pode conduzir à auto-depreciação e à vergonha, uma vez que as emoções primárias são negadas e reprimidas, numa tentativa de evitar a dor, e de seguir em frente. É fácil perceber que este tipo de perdão não facilita a recuperação do bem-estar psicológico, funcionando mesmo, como um impedimento a que tal possa ocorrer, uma vez que, entre outras coisas pode dar origem à falta de respeito próprio.

As problemáticas que envolvem a questão do perdão estão na maior parte das vezes relacionadas com assuntos inacabados


Um assunto inacabado pode gerar dois tipos de respostas: Ressentimento e Resignação.

Ressentimento- refere-se a um não-fechar do assunto que leva à ruminação, ou seja, à activação de pensamentos sistemáticos em torno do assunto inacabado.

Resignação- refere-se a um não-fechar do assunto de forma passiva, aparentemente conformada e vitimizante.

Qualquer destas respostas não é adaptativa no longo prazo e necessita de um processo de tomada de consciência e aceitação que implica sempre o luto pelo que se passou/perdeu, e pela atribuição de novos significados a essa perda e à nova realidade.

Aceitar o passado e o presente é uma tarefa nem sempre fácil, mas absolutamente necessária. Perdoar é uma escolha.


Durante o processo de aceitação, podem ocorrer desejos de vingança, que são positivos, uma vez que permitem trazer à superfície a zanga escondida e autorizar a fantasia da vingança e podem, a seguir, permitir abrir o caminho para a empatia, para o sentir do outro e, eventualmente, para o perdão genuíno. Após este processo, será então possível responsabilizar (o que não é nem retaliar nem procurar vingança) ou perdoar de facto.


A responsabilização implica que quem ofendeu seja responsabilizado pelos seus actos, ou seja, que, tanto quanto possível, haja reparação ou reposição de justiça sem que seja necessário perdoar.


O Perdão só é possível se não houver sentimentos escondidos de frustração, zanga, desejo de vingança, vergonha… Nas relações mais próximas será mesmo necessário poder restabelecer a confiança. Nos casais, ou o perdão é genuíno, ou as emoções não consciencializadas estarão sempre entre os dois, despoletando comportamentos que podem levar à ruptura.


Em conclusão, pode dizer-se que os vários significados e definições de “perdoar”, os contextos diversos a que este acto se pode referir, as diferentes pessoas envolvidas e o seu grau de proximidade, bem como as diferentes dimensões e factores que estão associados ao perdão, fazem com que este tema seja, complexo e multifacetado, não havendo respostas simples nem fáceis, mas havendo caminhos claramente benéficos e outros não benéficos, quer para o bem-estar psicológico individual, quer para uma ética social mais responsável.

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