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Tolerância, ou o semáforo laranja



Ouvimos a palavra tolerância, ou derivadas, em diversos contextos:

“Tem 10 minutos de tolerância”, “agiram com alguma tolerância”, “tolera-se bem”, “é tolerável”. A palavra tolerância surge-nos do latim com o significado de suportar e, neste sentido, tolerar será aceitar com reticências, será considerar que o erro, o desvio ou o risco, está dentro do que é possível suportar.





Sabemos que, à semelhança de muitas outras palavras, “tolerância” foi conhecendo variações de sentido ao longo dos tempos, e, muitas vezes, tem o significado de aceitação, mas noutras parece ser uma esmola. Convém por isso clarificar.

Dizia Gandhi «Tolerância é uma necessidade em todos os tempos e para todas as raças. Mas tolerância não significa aceitar o que se tolera»,

Neste contexto, vemos que há um espaço para aceitar e um espaço para tolerar. “Tolerar” surge como uma condescendência e “aceitar” surge como “aprovação”. Talvez seja importante perceber que, em termos psicológicos, “aceitar” não tem que significar aprovar ou concordar, mas sim, não negar, reconhecer a realidade da existência.

Olhemos agora para um excerto da Carta que o filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704) escreveu sobre a Tolerância (religiosa).

Tudo quanto cada homem deve sinceramente investigar em si mesmo, através da reflexão, estudo, julgamento e meditação, não se pode considerar como sendo propriedade particular de qualquer classe de homens. Os príncipes nascem superiores em poder, mas em natureza igualam-se aos outros mortais. Nem o direito nem a arte de dirigir compreendem o conhecimento seguro das outras coisas, e muito menos da verdadeira religião. Pois, se assim fosse, por que os senhores de terra diferem enormemente em assuntos religiosos?

John Locke


Este excerto impressiona pela sua actualidade não só, infelizmente e ainda, em termos religiosos, como também pela sua aplicabilidade a muitas outras questões, alvo de descriminação nos nossos dias. Pelo menos, nesta passagem, o tom parece ser mais o de aceitação do que o de tolerância. Mas vejamos como poderemos olhar para estes termos e diferenciá-los.


Penso a palavra “tolerância” como o sinal laranja dos semáforos, que funciona nos dois sentidos, verde-laranja-vermelho e vermelho-laranja-verde, como, de resto, acontece nos semáforos de alguns países.


Se é verdade que, em termos psicológicos, há ganhos em desenvolvermos tolerância à frustração, à dor, e às agruras da vida, (eventual área laranja) também é verdade que só ganhamos em acolhê-las na área de aceitação (espaço verde) exatamente porque fazem parte integrante da vida e não as podemos evitar.

Este processo deve ser feito com alguma sabedoria, aqui encarada como conhecimento do próprio e do meio que o rodeia e, por um lado, com abertura e flexibilidade, por outro lado, com firmeza para não termos de tolerar o que não deve ser suportado (zona vermelha)


Imaginemos que nos aceitamos por inteiro e sem reservas, o que é um passo fundamental para o nosso bem-estar e para um melhor relacionamento com os outros. Cada um de nós será uma zona verde, logo será difícil não aceitarmos o outro também como uma zona verde. Depois temos os nossos comportamentos, quanto mais em congruência estes estiverem com o que sentimos e pensamos, mais os aceitamos também na nossa zona verde. Assim é fácil perceber que uma aceitação incondicional de si próprio alinhada entre o que sente pensa e faz e entre o que é, e o que gostaria de ser, permite uma zona verde muito ampla, isto é, permito-nos um maior grau de liberdade para nós e para o outro. Quanto maior for esta zona verde, mais fácil é também apercebermo-nos do que queremos, conseguimos e podemos tolerar, (zona laranja) e do que, decididamente consideramos como não-aceitável e aí fixarmos limites (zona vermelha). A área laranja pode ser mais ou menos flexível de acordo com inúmeras variáveis e circunstâncias do próprio e do outro. Cabe a cada um de nós e a cada momento definir essa zona, sabendo que quanto menor for a nossa área verde, menos espaço e flexibilidade concedemos à zona laranja, caindo de imediato na vermelha. Pelo contrário, quanto mais habitarmos um amplo espaço verde, mais facilidade teremos em flexibilizar a zona laranja equipando-a de fronteiras mutáveis, e menos receio teremos de assinalar a zona vermelha com firmeza sempre que o considerarmos necessário.


Ao fazer este trabalho sobre nós próprios, torna-se mais fácil entender o outro, pormo-nos na sua pele, analisarmos as suas circunstâncias e aceitá-lo, não como igual a nós, mas precisamente como diferente, específico, único; contudo, igual em direitos.

Assim, dizer-se de uma pessoa que: “É muito tolerante”, pode significar que é muito aceitante, ou que não sabe pôr limites. Pode também significar que é uma pessoa com grande dificuldade em definir as suas zonas verdes e vermelhas, e que vive maioritariamente numa grande zona laranja, com pouco verde, o que não é de todo aconselhável. E porquê?


Porque para se viver bem consigo próprio e em sociedade, só teremos a ganhar se estabelecermos grandes áreas verdes de aceitação, sem reticências, e claras zonas vermelhas de não-aceitação. A zona laranja da tolerância nascerá assim automaticamente nas margens do verde e nas fronteiras do vermelho. Viver portanto numa grande área laranja pode significar, ter dificuldade em aceitar-se a si, aos outros, e à vida, vivendo no receio de si, do outro, e da existência. Poderá ainda significar que há dificuldade em fazer respeitar os limites, (definir área vermelha), ou seja, vivemos resignados. Por vezes, um enorme desejo de agradar (de ser amado) impede-nos de dizer “não”, ao mesmo tempo que não nos permite dizer “sim” de forma plena, ficando por isso numa situação que não é suficientemente apaziguadora para nos permitir o gozo da área verde. Devemos ter em mente que a zona laranja é uma prerrogativa, uma condescendência, uma aceitação reticente, um “sim, mas…” Deverá ser um local de passagem, que poderá ser tão flexível quanto a extensão da minha área verde o permitir, mas não deverá ser um lugar para habitar com tranquilidade e bem-estar. Não devemos passar pela vida a suportar o inadmissível, ou a não aceitar genuinamente o que faz parte da condição humana.


Tenhamos em mente que “tolerar” aquele que é diferente, que pensa de outra forma ou vive de outro modo, é autoatribuir-se uma superioridade e uma soberba que condescende tolerar o outro, suportando-o como alguém que não consegue/sabe estar ao mesmo nível e assumindo que se é detentor do único caminho certo/válido.


Julgo que o respeito pela diferença e unicidade de cada um, passa, não pela tolerância, mas pela aceitação. Aceitação de que há múltiplas maneiras de nascer, crescer, sentir, ser, estar, pensar e viver, e que todas devem ter iguais direitos e deveres, não necessitando de tolerância condescendente, mas sim de aceitação por direito próprio.


Aceitemos a diversidade da vida e a condição humana

Toleremos as falhas, incompreensões e percalços que surgem nas interacções

Não toleremos invasões ou roubos de espaços de liberdade, de justiça, de saúde ou de educação.

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