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Ciúme, o Monstro de Olhos Verdes


- Senhor, cuidado com o Ciúme. É um monstro de olhos verdes, que escarnece da carne de que se alimenta.”


William Shakespeare (in Othello, 3º acto; Iago dirigindo-se a Otelo)




Ao longo da história da humanidade são múltiplos os exemplos de ciúme. Na literatura também não faltam exemplos deste sentimento humano tão bem sintetizado na fala do personagem de Shakespeare que citámos acima.

Quando falamos de ciúme, ocorre-nos provavelmente, em primeiro lugar, a sua expressão nas relações amorosas, mas podemos encontra-lo em relações fraternais face ao amor/atenção dos pais/cuidadores, entre amigos face a um outro amigo, tido, por qualquer razão, como especial, ou entre colegas em relação a professores, chefias, etc.

Mas então donde surge este ciúme e o que é?

O Filósofo francês René Descartes (1596-1650), no seu tratado “As paixões das Almas”, diz-nos o seguinte:

Artº167

O ciúme é uma espécie de temor que se relaciona com o desejo de conservarmos a posse de algum bem; (…)

Artº169

Rimos de um avarento quando ele é ciumento de seu tesouro, (…).E desprezamos um homem que é ciumento de sua mulher, pois isso é uma prova de que não a ama da maneira certa e tem má opinião de si ou sobre ela. Digo que ele não a ama da maneira certa porque se lhe tivesse um amor verdadeiro não teria a menor inclinação para desconfiar dela. Mas não é à mulher propriamente que ama: é somente ao bem que ele imagina consistir em ser o único a ter posse dela; e não temeria perder esse bem se não julgasse que é indigno dele, ou então que sua mulher é infiel. (…)


Descartes, distingue entre “ciúme bom” -cuidador, protector- e “ciúme mau” – amor errado, má opinião de si ou do outro-.


Permito-me agarrar naquilo a que Descartes chama “ciúme bom”, e considera-lo uma parte do amor que cuida e protege o ser amado. Essa parte é de facto amor, quando adaptada à situação e à idade (não se protege e cuida da mesma forma um bebé, uma criança, um adolescente ou um adulto, nem se cuida ou protege nenhum deles sempre da mesma forma), porém, quando se protege e cuida duma forma desadequada, (uma forma que não tem a ver com as necessidades do outro, mas com as do próprio) aí encontramos o “não amar da maneira certa”. Vejo-me por isso a avançar para a posição de Spinoza (1632-1677) que viu o ciúme apenas como negativo decorrente da ameaça de uma perda, um sentimento que passa a ódio sempre que a relação amorosa parece ameaçada.


Mas voltemos ao “ciúme mau” cartesiano, enquanto fruto de um “não amar da maneira certa” e de uma “má opinião de si” (ou do outro). Vejo o “não amar da maneira certa”, como o sentimento de posse do outro (tal como o autor refere) e a “má opinião de si” como a “ferida narcísica” de que nos fala Freud, ou, se preferirmos, como um processo de vinculação que não foi suficientemente segura e que conduziu a uma baixa autoestima, contribuindo para as dificuldades ao nível da maturação emocional e da concepção de si como ser autónomo e “amável” (passível de ser amado).

Olhemos para o ciúme como uma reacção complexa a uma ameaça (real ou imaginada) a uma relação de apego diádica que se valoriza. A ameaça é vista como algo ou alguém (rival) que interfere nessa relação.

A reacção que o ciúme gera, envolve emoções complexas, de frustração (um misto de tristeza, zanga e medo) que pode levar à angústia, à raiva e à vergonha por se antever ou imaginar que se perde a “relação de primazia” com o ser (objectificado, porque não livre) que se deseja seu.


Percebemos assim que o ciúme se relaciona sobretudo com o sentimento de posse de alguém de quem o ciumento necessita para ser preferido, para ser amado (já que o próprio não consegue fazê-lo), e não com o amor ao outro ou do outro enquanto livre escolha (já que o próprio receia que ele/ela não o faça, se não for preso/controlado).

Podemos dizer que quanto menos segura foi a vinculação parental na infância, mais o ciúme pode ter tendência a ser patológico, procurando obcessivamente certificar-se de um apego que paranoicamente vigia, podendo acabar por destrui-lo.


Retomando a citação de Shakespeare, diria que todos nós podemos conviver facilmente com um sorriso de olhos verdes que nos pisca o olho, de vez em quando, de dentro do nosso bolso, alertando-nos para a nossa vulnerabilidade, receios, desejos, ilusões e mágoas, a que talvez devêssemos prestar mais atenção para melhor nos conhecermos. O problema surge quando o sorriso se fecha, nos escapa do bolso e começa a degradar a nossa relação. E pior será, quando o monstro, que se alimenta de quem o alimenta, crescer e atingir proporções que poderão ter terríveis consequências. (Otelo mata a sua mulher, Desdémona)


Quando o ciúme se torna monstro chamamos-lhe patológico, há desconfiança constante, agressão verbal e compulsão a verificar as acções do/a parceiro/a (escutar conversas, ver mensagens e e-mails, ou mesmo segui-lo/la ou aprisioná-lo/la). Curiosamente, estas tentativas de aliviar o desconforto, não só não resultam porque não são duráveis, como têm tendência a agravar-se podendo desembocar em situações de delírio, em que a interpretação da realidade é feita através dos receios do próprio e de imagens que fantasia e projecta, antecipando-as ou vivendo-as como reais. Estas interpretações delirantes podem levar a conclusões erradas e a acções desastrosas, uma vez que as crenças sobre o que se está a passar não são permeáveis à testagem da realidade. Estes casos, para além de intervenção psicoterapêutica, necessitam de intervenção psiquiátrica, em muitas situações com caracter urgente.


A terminar, direi que jamais o ciúme poderá ser prova ou resultado de muito amar. É sim, o medo desesperante de abandono, de vazio, de impossibilidade de ser, perante a perda da posse, da exclusividade ou da primazia de quem queremos que nos ame.

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